domingo, 21 de março de 2021

Minhas sete vidas - a difícil arte de ser jovem e sobreviver (Vida 3)

Pulo da pedra...de ponta!


Quando se tem 16 anos e se estuda no turno da manhã as tardes podem ser tediosas, ou não. Vitória, Espírito Santo, oferece ao jovem selvagem a praia como principal passatempo e diversão. Mas é preciso algo mais que mergulhar no mar ou “pegar jacaré”.

 

Há um lugar famoso em uma das praias dali, ideal para a prática de “pulo de pedra” (também tinha “pulo de ponte”). As Andorinhas são duas pedras altas e pontudas, a uns 100 metros da praia, e na época eram um playground para os moleques que queriam testar seus poderes, disputar com os amigos ou simplesmente se divertir. Tinha espaço nas pedras para quem quisesse o pulo pequeno, o médio ou o grande, esse último de uns 8 a 10 metros de altura, dependendo da maré. Já vi muita gente subir até o último pulo e descer para os mais baixos.

 

Um dos parceiros costumeiros das idas às Andorinhas era o Cristiano, o amigo que mais se aproximou de ser um metaleiro de verdade (o resto tentou, mas as mães chegavam junto para tentar barrar a rebeldia: a minha jogava fora as blusas cortadas do Iron Maiden e do Metallica...quanta raiva!). Cristiano não, chutou o balde, lutava muito para manter a cabeleira de responsa, usava um coturno podrão, até nos dias mais quentes, encheu o quarto de pôsteres das bandas, tinha as blusas mais rasgadas. Só tinha uma vaidade: o desodorante spray de uma marca verde com cheiro de espuma de barbear (esse tema talvez fosse um dos únicos que ele evitava falar, afinal sua subaca tinha mesmo um cheiro potente, embora ninguém desafiasse dizer).

 

Pois bem, para as tarde entediantes buscávamos aventuras, incluindo os pulos de pedra. Lá fomos nós, de bicicleta, até as Andorinhas. Bikes amarradas na praia, blusas e chaves enrolados e escondidos em algum buraco das pedras. Um nado de 100 metros até o playground natural de granito e já o primeiro desafio: escalar as Andorinhas!

 

Como nós, outros garotos estavam ali para se divertir. Aliás ali era um território neutro, longe da segregação provocada pelo nosso bairro de classe média, e onde encontrávamos a galera da periferia. O jeito safo deles contrastava com o jeito inseguro dos ‘filhos de mamãe’: eles dominavam a arte de escalar e pular.

 

Feita a escalada, no meio do caminho você podia escolher. O pulo pequeno ou médio, dos medrosos e fracotes, obviamente, ou o pulo grande, dos “fodas”. Pulo grande, óbvio, afinal podia ser motivo de chacota ali, ou na escola, no dia seguinte.

 

Preparação para o pulo não deve haver. Como dizia um professor de física do ensino médio: “se pensar muito, você erra”. Era chegar e se jogar.

 

Alguns pulos de pé e lá pelas tantas o desafio estava posto: se jogar do pulo grande de ponta cabeça! Ali, diante daquela altura, eu não escutei o Prof. de física. Pensei, pensei, medi, calculei. Cristiano já estava lá embaixo, chamando pra ir embora e zoando minha insegurança. Outros moleques esperavam na fila. Eu tinha que pular, e de cabeça! Fui...

 

Tamanha altura se esgota em segundos. Pro meu azar não fiz o macete clássico de quem pula de ponta: proteger o impacto da cabeça com as mãos entrecruzadas para evitar o choque. Mergulhei de cocuruto na lâmina d´água, que mais parecia um concreto.

 

E ali gastei mais uma vida. Ao subir a superfície vi que algo estranho tinha acontecido. Respirava, mas parecia que era “só isso”. Não conseguia mexer meu corpo como minha mente gostaria. Estava paralisado.

 

Esperei. Aí, aos poucos, senti a força voltar ao corpo. Talvez o coração tenha reestabelecido todas as conexões, pois ainda precisava viver e aprender algumas coisas. Talvez Iemanjá tenha atuado para refazer ligações metafísicacorporais subitamente perdidas. 


O fato é que voltei a nadar. Nadei rápido como nunca antes. E gritei. Talvez meu maior grito depois do grito do parto.