Vida 2 - Pagando caro por sair sem pagar
Sair pela porta de trás do ônibus sem pagar a passagem era
uma das formas de desafiar o sistema no início dos anos 90. Chamávamos o ato de
“traseirar”. Até que um dia um evento marcou o fim da prática na cidade, pelo
menos entre os amigos do bairro.
Não é uma ação tão trivial assim como se pensa: fora a cara
de pau necessária para permanecer antes da roleta por um tempo, é preciso ser
ágil e sair antes dos passageiros do ponto entrarem, e ainda torcer para que o
motorista não feche a porta antes do tempo. Ser xingado pelo trocador era normal.
Como sempre, na adolescência, estávamos em bando, e se
precisássemos pegar ônibus para ir a algum lugar a lei era sempre traseirar.
Nessa época vivíamos o tempo das festas americanas:
meninos levavam bebidas (quase sempre refrigerante) e meninas comidas (coxinhas
frias, fandangos etc.). Não importava muito, o ponto alto da festa era dançar ‘música
lenta’ ao som de Take my breath Away.
E tinha a vassoura, outra protagonista das festinhas. Quem
não estivesse dançando poderia disputar a vassoura (já vi muito cabo de guerra
nessa hora, e até vassourada mesmo). A bendita tinha magia mesmo: te permitia
cutucar um dançarino qualquer e ocupar seu lugar na dança com a menina. Aliás,
mais tarde percebi que eram sempre os meninos que detinham as vassouras. Uma reprodução
juvenil da sociedade patriarcal e machista.
Pois bem, eis que num sábado surge uma festinha americana num
bairro distante do nosso, o que nos obrigava a pegar ônibus e....traseirar. Banho
tomado, melhor roupa do armário, evidentemente, e um perfume pra dar o toque
final. Peguei um casco vazio de vidro de coca-cola de 1,25 Lt e uns trocados
das gavetas da casa para poder comprar o refrigerante cheio.
Estávamos em quatro: eu, Douglas (mais velho da turma, talvez
por isso obcecado por impor seu domínio, embora o mais franzino), Léo “Preto”
(colega de um bairro vizinho ao meu, levado pela polícia certa vez em que
pichávamos, ele e eu, um muro no meu bairro – o racismo estrutural explícito me
deixou de fora da viatura e só levaram ele até a casa dos pais), e Luiz (primo
do Alexandre, o garoto mais calado do mundo, que morava na nossa rua, e que
mais tarde soube ter se transformado num excelente músico.)
Quatro moleques e um sonho adolescente em comum: dançar
música lenta. Luiz tinha gel no cabelo, Douglas usava blusa pra dentro da calça
e um cinto que certamente era do seu pai (que mico!), nossos perfumes, em grande
quantidade, conflitavam.
Com o casco vazio de coca-cola em minha mão entramos no
ônibus e logo estacionamos antes da roleta. Climão com o cobrador, que já sabia
que tentaríamos o golpe. Era sábado à noite e o ônibus estava vazio, assim como
os pontos de ônibus. Ficamos ali até chegar ao bairro da Praia do Canto.
A pulsação acelerou. Nossa parada se aproximava. Silêncio. Atenção
máxima aos próximos pontos. Chegou o nosso. Ninguém deu o sinal para subir, só
para descer, pela porta da frente. Solução: forçar a porta para sair, com ajuda
de todos. Douglas foi o primeiro. Conseguiu. O cobrador gritou alguma coisa. Luís
o segundo. O clima esquentou, mais gritos do trocador. Eu fui o terceiro. O
ônibus já tinha começado a andar. Eu estava com a perna esquerda pra fora, mas não
conseguir passar a perna direita. Caí no chão, estatelado, e a garrafa explodiu
comigo.
O ônibus continuou e foi me arrastando até que algumas
pessoas começaram a gritar – na verdade não sei de ondem vinham os gritos, se
de dentro do ônibus ou das pessoas que estavam no ponto – o suficiente para o motorista frear e abrir a
porta. Minha perna direita foi solta e ele seguiu viagem, como se nada tivesse
acontecido. Léo Preto aproveitou pra sair.
Levantei, assustado, tentei andar, mas mancava muito. Olhei
para meu joelho e a calça preta estava com um rasgo enorme e via um corte
profundo. Não quis ver. Também não sabia como tinha acontecido aquilo (só mais
tarde associei ao casco da coca-cola quebrado). Segui mancando e pedindo ajuda.
Léo Preto me segurou. Começaram a gritar: “chamem uma ambulância!”.
Do nada apareceu uma mulher que se ofereceu para me levar ao
hospital. Entrei no banco de trás do Fiat Uno dela, estendi a perna boa e
deixei a machucada apoiada no chão. Estava grogue. Tinha que fazer força para
falar.
Cruzamos o ônibus. Quis guardar o número dele e a cara do
motorista para me vingar. Com o motorista nunca ousaria fazer nada, mas meses
mais tarde fuzilamos o ônibus 232 com uma chuva de ovos para honrar a promessa
de vingança.
Pedi que me levassem ao hospital onde meu pai trabalhava,
mesmo sabendo que ele não estava lá (estava na roça, visitando meus avós). Fui
o trajeto todo até o hospital dizendo que nunca mais iria andar direito, que
nunca mais iria jogar futebol, que eu iria mancar pra sempre, que eu iria
perder a perna. A moça que caiu do céu e Léo Preto tentavam me acalmar.
Quando cheguei ao pronto socorro do hospital abriram a porta
do carro para eu sair: uma poça enorme de sangue se formou no chão do Fiat Uno.
Achei que ia morrer sem sangue no corpo. Me colocaram numa maca e me levaram pra
uma sala depois da recepção.
Antes de me injetarem a anestesia geral ouvi a voz da minha
mãe, que veio acompanhada com um vizinho. Ele veio me ver e disse que minha mãe
estava ali ao lado, mas que não entraria, pois estava muito abalada e não
queria ver o ferimento. Veio a injeção da anestesia. Quis finalmente olhar para
minha perna esquerda e juntei toda a força que tinha para erguer o pescoço. O
que vi nunca esquecerei: um joelho aberto, cheio de carne cortada, rótula
exposta...foi uma imagem tão terrível que caí em sono profundo.
E assim fiz uso da minha segunda vida...