sábado, 6 de fevereiro de 2021

Minhas sete vidas – a difícil arte de ser jovem e sobreviver. (Vida 1)

 Vida 1: A charrete de Ben-Hur, ou A vingança de Chevete.


Os filmes antigos do Ben-Hur povoavam meu imaginário. Não só as vestimentas esdrúxulas, as cornetas marcantes, mas principalmente o momento das corridas de carruagem com as lutas travadas em plena velocidade. Aquelas rodas com pontas de ferro eram demais, só não gostava muito de ver os cavalos capotando destrambelhados. 

 

Certa vez, o espírito ben-huriano baixou em mim e no meu amigo Ratão (sim, há pessoas que parecem animais, e há quem diga ainda que toda pessoa irá necessariamente se parecer com algum animal).

 

Tudo muito calmo na tranquila cidade de interior de Itarana. Parecia que ali uma nuvem de café torrado havia estacionado para sempre no céu da cidade, que fica num pequeno vale. Tratores pequenos circulando com o barulho típico de motor de barco, os trotes dos cavalos soavam alto na rua de paralelepípedo, alguns pomeranos passando pra lá e pra cá, falando uma língua só deles. Todo mundo se cumprimentava.

 

Para dois jovens da cidade passeando na roça, aventurar-se nuns cavalos é o que de melhor poderia acontecer. Dito e feito. Perguntamos ao meu avô Quintiliano se ele conhecia alguém que podia emprestar dois cavalos pra gente andar (meu avô não tinha cavalos, apenas umas poucas vacas para o leite e o queijo e como forma de poupança também). Ele nos orientou a irmos até o sítio do “Seu Renato” pela estrada de chão que saía da cidade, um amigo dele que tinha uns cavalos.

 

Caminho lindo até lá. Os morros com as rotas recortadas pelo gado, os últimos pedaços de mata no topo dos morros, o ribeirão beirando a estrada, cada sítio com sua casinha saindo fumaça do fogão à lenha. Íamos perguntando a quem raramente passava: “- onde mora Seu Renato?”. “- É só seguir!”. A energia era tanta que com um graveto na mão ia acertando tudo o que via pela frente: pedrinhas, formigas, buraco de cupinzeiro. Guardei-a para ajudar a “tocar” o cavalo.

 

Não demorou muito encontramos o sítio do Seu Renato. Atravessamos uma ponte de madeira que cruzava o riacho e batemos palma pra chamar: - “Seu Renato! Boa tarde!?”.

 

Lá de dentro da casinha de Seu Renato sai um senhor muito simpático, magro, bigode farto e cinza, chapéu na cabeça, mastigando um capim, camisa de botão aberta um palmo (o que deixava um triângulo bronzeado no peito).

 

- Olá seu Renato, boa tarde.

 

- Boa!

 

- Eu sou neto do Seu Quintiliano. Ele disse pra eu ver com o Sr se daria pra você emprestar uns cavalos pra gente passear.

 

- Ora, posso, se vocês esperarem um pouco. Mas estou só com um cavalo bom hoje. Anda um e depois o outro.

 

Andar sozinho é bem sem graça né. Olhamos para o curral, que não ficava muito longe da casa. Umas selas penduradas, uns animais dentro do curral e mais um milhão de pequenos objetos que mais parecia um museu agrícola familiar tradicional. E uma charrete de madeira.

 

Meu amigo Ratão, que não se envergonhava de ser um pidão nato, não perdeu tempo. – Podemos andar na charrete então? – Mas vocês sabem guiar? Aí trocamos aquele olhar que dura centésimos de segundos: – Já guiamos algumas vezes. Outra vez se adiantou o cara-de-pau. – Olha lá hein! Se vocês estão dizendo...

 

Seu Renato devia ter uma grande consideração pelo meu avô para largar tudo e ir preparar a charrete pra gente. Com uma calma e uma habilidade incrível de chamar o cavalo pelo nome, colocar o cabresto, selar e assentar a charrete no cavalo, em poucos minutos estava pronta a carruagem do Ben-Hur. Chevete era o nome do nosso campeão das arenas e que iria nos levar agora pelas ruas de Itarana.

 

Subimos na charrete. Estávamos eufóricos. Ratão logo pegou as rédeas, afinal havia dito que era experiente. Eu peguei o chicote que estava no pé da charrete, conforme orientado pelo Seu Renato (coloquei meu graveto-espada no pé, não ia servir para atiçar nosso cavalo).

 

Lá fomos nós, fazendo “barulho de beijo”, imitando os sonidos do Seu Renato e atiçando o Chevete. Algumas risadas nervosas para descarregar a tensão e lá estávamos na estrada de chão, a caminho do sítio do meu avô e da cidade.

 

O começo foi tranquilo, andávamos num ritmo devagar, o cavalo trotando, e a gente pulando no banco: Chevete estava de sacanagem conosco, sabia que éramos inexperientes no comando.

 

Resolvemos ir na cidade, dar um rolê. Não vimos nenhum grupo de meninas, para nosso desencanto: queríamos exibir nossas habilidades na charrete.

 

Demos uma acelerada no Chevete. Nos quebra-molas da cidade, a charrete dava uns pulos de meio metro. Não sei porque as pessoas ficavam olhando tanto. O que seria mais estranho: dois garotos da cidade passando ali na charrete do Seu Renato ou a velocidade com que cruzávamos as ruas e atravessávamos os quebra-molas?

 

Circulamos por quase toda a cidade numa velocidade acima da média. Resolvemos voltar e tomamos outro caminho à casa do Seu Renato. Decidimos então dar umas últimas chicotadas no Chevete, já que estávamos indo embora. Gritamos alto e confesso que pesei um pouco a mão no chicote. E Chevete atendeu de pronto.

 

Não esperávamos porém que nesse novo caminho, após uma leve descida, uma curva fechava bastante à direita. E aí, minha primeira vida foi “gasta”: com tamanha velocidade a charrete inclinou para o lado esquerdo na hora de curvar e capotou como as carruagens do filme. “Voar, voar, subir, subir”. Lá fui eu, que estava no canto direto do banco, não mais brincado de “Ben-Hur”, mas de “super-homem”: voei como nunca tinha voado antes, por cima da cerca de arame, numa altura de uns dois metros talvez, para cair rolando pasto abaixo.

 

Quando meu corpo parou, não me mexi. Só levantei a cabeça e olhei para mim mesmo. Braço levantando, perna se mexendo. Um sangue na perna! Minha única verruga da vida havia sido decepada na queda. Olhei para a estrada, acima. Chevete relinchava alto e ouvia uns gemidos do Ratão (não conseguia vê-los; na verdade Ratão estava berrando de dor, escandaloso que era). Fui subindo meio mancando para ver e já havia parado um homem numa moto para ajudar (segurou a rédea do Chevete e destravou a charrete que estava tombada, para o cavalo se acalmar).

 

A bermuda do Ratão tinha ficado grudada na ferragem da charrete, por isso, embora ele não tenha voado como eu, sofreu arranhões no chão de terra (um dos arranhões, na bacia, demorou a curar, ficou verde e inflamou nas semanas seguintes, o que causou ainda mais comoção nos pais do Ratão).

 

Chamaram Seu Renato, que foi buscar Chevete e a charrete. Nem esperamos ele chegar. Fomos caminhando, meio mancando, roupas empoeiradas e rasgadas, sangue escorrendo nas canelas, bacias e cotovelos. Resmungos aqui e ali. O sítio do meu avô era ao lado do hospital da cidade e resolvemos ir direto ao hospital fazer curativos (Ratão insistiu, por mim tínhamos ido direto pra casa, afinal meu pai poderia proceder os cuidados médicos). Chamaram meu pai e meu avô ao hospital, pelo grito mesmo. Ao chegar, não resistiram à história e se divertiram com os enfermeiros presentes. Chegamos até a rir também. Minha verruga nunca mais ressurgiu e de charrete nunca mais andei.

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