segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Minhas sete vidas – a difícil arte de ser jovem e sobreviver (Vida 2)

Vida 2 - Pagando caro por sair sem pagar

Sair pela porta de trás do ônibus sem pagar a passagem era uma das formas de desafiar o sistema no início dos anos 90. Chamávamos o ato de “traseirar”. Até que um dia um evento marcou o fim da prática na cidade, pelo menos entre os amigos do bairro.

Não é uma ação tão trivial assim como se pensa: fora a cara de pau necessária para permanecer antes da roleta por um tempo, é preciso ser ágil e sair antes dos passageiros do ponto entrarem, e ainda torcer para que o motorista não feche a porta antes do tempo. Ser xingado pelo trocador era normal.

Como sempre, na adolescência, estávamos em bando, e se precisássemos pegar ônibus para ir a algum lugar a lei era sempre traseirar.

Nessa época vivíamos o tempo das festas americanas: meninos levavam bebidas (quase sempre refrigerante) e meninas comidas (coxinhas frias, fandangos etc.). Não importava muito, o ponto alto da festa era dançar ‘música lenta’ ao som de Take my breath Away.

E tinha a vassoura, outra protagonista das festinhas. Quem não estivesse dançando poderia disputar a vassoura (já vi muito cabo de guerra nessa hora, e até vassourada mesmo). A bendita tinha magia mesmo: te permitia cutucar um dançarino qualquer e ocupar seu lugar na dança com a menina. Aliás, mais tarde percebi que eram sempre os meninos que detinham as vassouras. Uma reprodução juvenil da sociedade patriarcal e machista.

Pois bem, eis que num sábado surge uma festinha americana num bairro distante do nosso, o que nos obrigava a pegar ônibus e....traseirar. Banho tomado, melhor roupa do armário, evidentemente, e um perfume pra dar o toque final. Peguei um casco vazio de vidro de coca-cola de 1,25 Lt e uns trocados das gavetas da casa para poder comprar o refrigerante cheio.

Estávamos em quatro: eu, Douglas (mais velho da turma, talvez por isso obcecado por impor seu domínio, embora o mais franzino), Léo “Preto” (colega de um bairro vizinho ao meu, levado pela polícia certa vez em que pichávamos, ele e eu, um muro no meu bairro – o racismo estrutural explícito me deixou de fora da viatura e só levaram ele até a casa dos pais), e Luiz (primo do Alexandre, o garoto mais calado do mundo, que morava na nossa rua, e que mais tarde soube ter se transformado num excelente músico.)

Quatro moleques e um sonho adolescente em comum: dançar música lenta. Luiz tinha gel no cabelo, Douglas usava blusa pra dentro da calça e um cinto que certamente era do seu pai  (que mico!), nossos perfumes, em grande quantidade, conflitavam.

Com o casco vazio de coca-cola em minha mão entramos no ônibus e logo estacionamos antes da roleta. Climão com o cobrador, que já sabia que tentaríamos o golpe. Era sábado à noite e o ônibus estava vazio, assim como os pontos de ônibus. Ficamos ali até chegar ao bairro da Praia do Canto.

A pulsação acelerou. Nossa parada se aproximava. Silêncio. Atenção máxima aos próximos pontos. Chegou o nosso. Ninguém deu o sinal para subir, só para descer, pela porta da frente. Solução: forçar a porta para sair, com ajuda de todos. Douglas foi o primeiro. Conseguiu. O cobrador gritou alguma coisa. Luís o segundo. O clima esquentou, mais gritos do trocador. Eu fui o terceiro. O ônibus já tinha começado a andar. Eu estava com a perna esquerda pra fora, mas não conseguir passar a perna direita. Caí no chão, estatelado, e a garrafa explodiu comigo.

O ônibus continuou e foi me arrastando até que algumas pessoas começaram a gritar – na verdade não sei de ondem vinham os gritos, se de dentro do ônibus ou das pessoas que estavam no ponto –  o suficiente para o motorista frear e abrir a porta. Minha perna direita foi solta e ele seguiu viagem, como se nada tivesse acontecido. Léo Preto aproveitou pra sair.

Levantei, assustado, tentei andar, mas mancava muito. Olhei para meu joelho e a calça preta estava com um rasgo enorme e via um corte profundo. Não quis ver. Também não sabia como tinha acontecido aquilo (só mais tarde associei ao casco da coca-cola quebrado). Segui mancando e pedindo ajuda. Léo Preto me segurou. Começaram a gritar: “chamem uma ambulância!”.

Do nada apareceu uma mulher que se ofereceu para me levar ao hospital. Entrei no banco de trás do Fiat Uno dela, estendi a perna boa e deixei a machucada apoiada no chão. Estava grogue. Tinha que fazer força para falar.

Cruzamos o ônibus. Quis guardar o número dele e a cara do motorista para me vingar. Com o motorista nunca ousaria fazer nada, mas meses mais tarde fuzilamos o ônibus 232 com uma chuva de ovos para honrar a promessa de vingança.

Pedi que me levassem ao hospital onde meu pai trabalhava, mesmo sabendo que ele não estava lá (estava na roça, visitando meus avós). Fui o trajeto todo até o hospital dizendo que nunca mais iria andar direito, que nunca mais iria jogar futebol, que eu iria mancar pra sempre, que eu iria perder a perna. A moça que caiu do céu e Léo Preto tentavam me acalmar.

Quando cheguei ao pronto socorro do hospital abriram a porta do carro para eu sair: uma poça enorme de sangue se formou no chão do Fiat Uno. Achei que ia morrer sem sangue no corpo. Me colocaram numa maca e me levaram pra uma sala depois da recepção.

Antes de me injetarem a anestesia geral ouvi a voz da minha mãe, que veio acompanhada com um vizinho. Ele veio me ver e disse que minha mãe estava ali ao lado, mas que não entraria, pois estava muito abalada e não queria ver o ferimento. Veio a injeção da anestesia. Quis finalmente olhar para minha perna esquerda e juntei toda a força que tinha para erguer o pescoço. O que vi nunca esquecerei: um joelho aberto, cheio de carne cortada, rótula exposta...foi uma imagem tão terrível que caí em sono profundo.

E assim fiz uso da minha segunda vida...

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